quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

VOLVER

Por que insisto em ouvir Mercedes?
Ela me acorda lutas que inexistem.
Ou será que dizem
repetidamente
não existirem?...
Não haverá mais vozes caladas?
Corpos infantes podem ser brincantes apenas?
O trigo, o fruto, a terra... refestelam aqueles
a quem a eles se entregam?
Olhares deixaram
de matar pessoas
por serem
apenas quem são?
A fita desenrola canções idas de um eu que dorme.
Uma lágrima insiste em expor-me
não por me transportar saudoso desses tempos idos,
mas por me ver inerte em tempos de agora.
Onde desisti de mim mesmo?
Certamente ao desistir de outros rostos
que olham olhares combalidos.
Ah, e essa canção infinda
transpira em mim algo que pensei morrido
Ah, essa bíblica canção que ressuscita...
A mim
“como um niño frente a Dios”.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

NATIVIDADE (PRIMAVERA)

Descobrir-se é navegar eternamente.
Cria-se do havido
um novo ser vivificado.
O que havia
outrora guardado
quebra a casca
e sai o novo ser que se vislumbra
e que uma vez vivente
busca a si mesmo deslindar.
Do gen imaturo
um maduro ser se manifesta.
Maduro ao ponto de cair
e dar-se conta
de que está sempre num eterno recomeço.   

Brasília, 1986.

OUTONO

Meus filhos se foram
deixando um rastro de silêncio infecundo
já não mais grito
já não mais choro
meus sonhos se diluem nas (im)possibilidades sociológicas
e, vazio, sequer clamo
sequer como
e bebo
a Palavra
que me move.
Meus filhos não nascem mais
já não consigo tecer a história
espero a hora
espero
espero...
Se ao menos eu clamasse de novo...
se ao menos eu recobrasse
a vida
tal qual eu oro...
Se ao menos ventasse em mim de novo...

Venta, Vento!
Venta!

POEMA DE DOIS MUNDOS

Um silêncio de ausências.
A cidade funcionava
máquina fria
mal percebia
as cores matinais.
E falando assim pareço
um menestrel de estrelas e de sóis
a sós consigo mesmo
longe da cidade empedernida.
Mas a cidade me comove
e me fascina.

Um homem desce do ônibus e prossegue sem tempo o seu destino,
meninos dançam
a música urbana,
homens discutem
e não escutam o silêncio das ausências,
suas palavras duras
gestos de loucura com disfarces de eloquencia.
Silêncio de ausências
da vida ausente
cristalizada morte
súbita e misteriosa morte
proibida em saraus
mas tão presente nos cálices servidos
sorvidos no oco da existência.
Fantasmas a desfilar mistérios
assombrados com a própria vida.

Penso contadores de estórias.
Recriam mundos mágicos
dentro dos contos da mais vil realidade.
A História me fascina
mesmo em meio às carnificinas nossas de cada dia.
Ensina o avesso,
conclama à vida ao mostrar a morte
de sorte que se deve olhar
aves do céu e lírios no campo
mesmo que haja aves abatidas
e campos manchados de rubro.
Ensina canções de esperança
cantigas livres...
mesmo que haja os versos rasgados
e poetas banidos.

Penso em contar estórias
que expulsem os ratos da cidade sequiosa
ao som das palavras que recontam
reinos encantados
e no entanto tão possíveis.

E o silêncio das ausências
anuncia que os desejos sobrevivem.
Um sêmen do futuro
no presente me engravida.



Brasília, 1991.

REPARTIÇÃO

Preso entre papéis
deixei correr a minha mocidade.
Sou tão carimbos, menos coração.
Quero o bosque.

No espelho diário
o homem perdido nos seios
da sensualíssima aurora
corre
atrás das horas
- Bate-ponto, bate-ponto, bate-ponto...
Quero o reencontro.

O menino brincava
versos frágeis e sorria futilidades.
As tardes se debruçavam
no futuro recriado,
agora esvaecido.

Preso entre papéis
ejaculo teias.
Perdi o canto
que me embevecia e me anunciava
a noite a ser vencida.
Quero o menino.

O bosque de duendes
e fantasmas dançantes
a espreitar minha última esperança.
O menino coberto do frio e do medo,
sem segredos, sem papéis
que representasse.
Agora aqui
preso entre papéis
quem sabe espero
quem sabe faça
que um sonho viva
e quebre espelhos
que a vida ergue dia a dia.

Brasília, 1990.




DESERTO

Brigado estou com as palavras.
Não mais acasalo versos
com o universo que habita
o cálice do licor da noite
enquanto as rosas esperam
n'alguma poesia
o ápice do vigor da aurora.

Estou brigado com as palavras.
O poeta morreu.
E estes versos ardem em mim
como um gelo imenso
a me pesar os ombros.
O mundo é o mundo
cansado, entristecido,
mesclado a risos retorcidos
e insanos risos verdadeiros
regado a prantos
que de canto em canto rasgaram o nevoeiro.

Estou brigado com as palavras.
A frigidez me alcança.
Visito meu próprio enterro.
Vou pra casa
taciturno
sem sementes de recomeço.
O olhar embotado de visões
sem saber cantá-las
em metáforas que rasguem a densa noite.

O Deus das horas do silêncio que habita as palavras
mostra-me o mundo
ferido e emudecido mundo
um jardim de lírios matizados
da seiva rubra das aves abatidas.
Mas ainda restam os níveos lírios
e aves que persistem em voar.
Revisito versos
antigos
outrora amigos,
cinzenta lembrança,
um duelo entre a vida e os desejos.
Um menino brinca dentro em mim
e um outono sopra nas quimeras.
- Pai, que não estás aqui,
  grávido estou do teu Espírito,
  ávido estou por este parto.

Brasília, 1989.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

(RE)VISITAÇÃO

A rua trôpega
Atrai meus passos
Seguros de não ser eu mesmo.
Caricato
Perambulo
Entre o que já fui e sou.
A ínfima certeza
Do que fui não faz
Dos passos que agora faço
Um retilíneo traço.
Lugares afins
Com o que trago em mim:
Risos soltos, um randevu
Fardos sim
Mas outros
Que não os meus.
Fardos ateus.
Cobiço
As ancas e os decotes
E em desenvernizadas cadeiras
Culotes são
Fartamente cobiçados.
Não há anjos
De porcelanas
Nem pudicas moças casadoiras
Há falsas
Desbragadamente falsas
Loiras de verniz.
O cheiro acridoce
Do copo mal emporcamente ensaboado
Me refaz comigo.
Daqui eu vim.
As ruas trôpegas
Me revisitam.
E na cruz das ruas
(esquina essa com travessa aquela)
Aprumo os passos
E sigo
Entre o que já fui e sou.



JARDIM DE INFÂNCIA

Naquela varanda
manhãzinha
as flores da tua lingerie se abriam
e eu
num zum-zum danado flor em flor.
O noturno orvalho
ainda persistia
em meio ao mel que concebias.
Naquela varanda
manhãzinha
visse a cidade a natureza agindo
e se escandalizaria.
Mas naquela varanda, manhãzinha
meu corpo cansou de esperar a tarde
e eu num zum-zum danado flor em flor.

Brasília, 1986.

CAMILA

A nudez límpida de Camila
contrastava
com o quarto turvo.
Era como gravura
de bico de pena
onde a luz incidisse apenas
no corpo de Camila.
Na cena
meu corpo não tinha a menor importância.


Camila não tem perfume.
Não podem ter perfume as camilas.
No entanto
a pele de Camila tinha cheiro
cheiro de Camila.
O melhor dos cheiros
que minhas narinas guardam.

Ao inalar Camila
uma alucinação tomou-me
e eu percebia Camila
não mais sendo Camila
mas ela mesma
e mesmo assim se abria
não mais por pena
como se quisesse apenas
fundir-nos.

domingo, 16 de janeiro de 2011

CORPOS

Seu corpo
ave aninhada em meu peito
doce enleio de seu beijo
carícia na alma adormecida.
O olor de sua pele
redescobre o desejo esquecido
de paixões doídas.
Sua pálida nudez
percebo-a com minhas mãos
que lhe conhecem,
que lhe vasculham
e se alojam
onde sua alma grita
e seu corpo fraqueja.
Olhá-la
volvendo-se em mim
na face o riso
de espasmos
carinhosa busca
que ajusta sonhos,
que ajunta corpos
que se sondam
e se enfronham mútuos.
A massa informe
como ícone sagrado que milagrosamente gera
suores, salivas, licores...
E assim cobertos
de si mesmos
o silêncio sela
o que há pouco fôra
a ressonante melodia dos amantes.

Brasília, 1992.